segunda-feira, novembro 19, 2012

"Desfado"

Ana Moura - "Desfado"

"O fado é cultura popular. Uma sua forma de expressão musical, a única com raízes urbanas em Portugal. Por isso mesmo sou normalmente avesso a tudo aquilo que o afasta – ao fado - dessas suas raízes populares e, assim, o desvirtua na sua essência: uma sua pseudo-intectualização, efectuada tantas vezes com recurso a formas poéticas vinda de fora desse universo popular ou a algumas formas musicais com ressonâncias “jazzísticas” ou eruditas, e, pior ainda, a sua transformação em música ligeira (de que o chamado “fado-canção” é expoente), como tão bem, ou tão mal, o fizeram, para citar um exemplo bem conhecido, Carlos do Carmo e José Carlos Ary dos Santos (não estou aqui a referir-me, como é óbvio, ao Ary dos Santos excelente letrista da renovação da canção ligeira portuguesa). Caminho inverso seguiu José Afonso, por exemplo, que vindo do fado e da canção de Coimbra, uma adaptação do fado de Lisboa ao universo vivêncial dos estudantes e tricanas de Coimbra, soube efectuar a sua miscegenação com outras formas musicais populares, rurais e coloniais, mantendo-se fiel, na essência, ao lugar de onde partiu.

Um muito pequeno exemplo, actual e interessante, desta procura de miscegenação do fado com outras formas de música popular, sem portanto alienar a sua essência, podemos encontrar neste tema de Ana Moura gravado com os “Gaiteiros de Lisboa”
, “Não é um Fado Normal”. Está, claro, muito longe do abalo telúrico que José Afonso, Carlos Paredes, José Mário Branco ou, até, António Variações provocaram na música popular portuguesa (nada de confusões). Mas, à sua dimensão, é um muito pequeno e interessante exemplo que merece a pena ser apontado, inovando nas sonoridades graças ao recurso a sopros e percussão mas sem que isso ponha em causa a sua origem e características populares. Por isso mesmo, ganhou direito a divulgação neste “blog" - 
Escrito neste "blog" a 24 de Janeiro de 2010 a propósito de "Não É Um Fado Normal", de Ana Moura.

Agora, com este "Desfado", um tema composto por Pedro da Silva Martins, dos excelentes Deolinda (who else?: a assinatura é bem audível), com uma introdução instrumental que lembra algum do José Afonso mais influenciado pela cultura tropical, Ana Moura reincide até num título que, tal como em "Não É Um Fado Normal", nos remete para a essência do tema. E só podemos ficar felizes por isso. Muito bem! 

2 comentários:

João disse...

Pedro da Silva Martins é dos melhores compositores/letristas de sempre!
Se formos a "ouvir" bem transformou por completo a música portuguesa e tem a assinatura dele em tudo o que de bom tem sido feito por cá ultimamente: Deolinda, Cristina Branco ("não há só tangos em Paris"), António Zambujo ("Algo estranho acontece" é uma obra prima) e agora, Ana Moura, com este Desfado!

JC disse...

Enfim, dou, como se vê, imenso valor a Pedro da Silva Martins e este "blog" foi pioneiro na divulgação dos Deolinda, mtº antes da edição do seu primeiro disco. Nos últimos anos, Pedro e os Deolinda foram inovadores e dos poucos acontecimentos dignos de registo na música popular portuguesa. Mas revolução deu-se c/ os "pais fundadores", José Afonso, Paredes, Sérgio Godinho, etc. Alguma contenção não impede que se reconheça a PSM o valor que merece.
Cumprimentos